sábado, 22 de novembro de 2008

Olvidada

Deixando os especialistas e seu papo científico de lado, a memória é composta por algo muito mais sofisticado que meras lembranças aleatórias - há toda uma seleção que revela nossa capacidade associativa e atribuidora de afeto. Acontece que algumas vezes tenho a impressão de que algum processo extraordinário alterou essas seleção, eliminando indevidamente certos dados ameaçadores.

Penso isso ao olhar para meu celular. Quedê que lembro de como era minha vida sem ele? É como se tivesse me acompanhado por toda uma vida, sorrateiro, com seu display a me jogar na cara as horas. Sou capaz de ouvir seu toque misturado aos meus desenhos prediletos de quando tinha oito anos, sentir o vibrar silencioso no meu bolso, interrompendo meu momento a sós com minha primeira garota, ou mesmo não duvidar caso alguém relate meu nascimento dando especial atenção ao modelo prateado pré-pago que veio de brinde, embutido na placenta de mamãe.
- Doutor, então, meu filho é...?
- Não é claro ainda. Está vivo, pelo menos.
- Graças a Deus!

Meus duvidosos momentos sem este aparelho foram, sem dúvida, eliminados da minha memória por alguma radiação estranha ou pacote promocional aceito inadvertidamente. E creio que alteraram meu senso de afeto também, atribuindo certo apreço à sutileza das mensagens de texto.

Pois é. Faço parte de uma raça que faz simbiose com esses acessórios: entra no banho de óculos, reclama da sunga ou bermuda que não tem bolso para carregar os tais objetos indispensáveis, e cujo coração bate mais forte de curiosidade ao escutar o apitar de mensagem recebida, principalmente quando já está à espera de alguma resposta. Aí surge a decepção: propaganda da operadora. Quantos suspiros decepcionados ante a desagradável descoberta das frases já tão conhecidas e nada sedutoras que tentam convencê-lo de que O Lance do momento é responder perguntas irrelevantes sobre aquele seriado bombástico que você nunca teve o desprazer de assistir.

Agora está tocando. Número desconhecido a cobrar.
- Nós raptamos seu filho, deposite agor...
- Esse tipo de assunto você discute com minha esposa. Eu só pago as contas no fim do mês.
Desligo. O fato de eu não ter filhos nem esposa talvez complique um pouco o golpe do malandro. Me pego pensando que, se há um equilíbrio entre bem e mal no mundo, teriam inventado o celular para contrabalancear os anjos da guarda ou vice-versa. Seja como for, ele ainda está aqui. Ainda. Ainda bem?

8 comentários:

  1. Muito bom o texto. Poxa, muito tempo que não lia as coisas suas. Confesso que me senti seduzido a lhe mandar uma mensagem. Isso, é Claro, para te dar um Oi mostrando assim que estou Vivo e como já esté no final do ano, um brinde a nossa amizade. Tim, tim.
    ps.: desculpe-me a tentativa infame de copiar seu trocadilho.

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  2. O celular na verdade sempre teve esse intuito de escravizar quem o possui. Graças aos Deuses que eu nunca fui e nunca serei escravo de tal maquinário de comunicação. Acho razoavelmente incompreensível algumas pessoas voltarem suas vidas para um aparelho a cada dia menor e com mais funções... Até onde isso vai? Qualquer dia lançam por aí um Nokya TMGIS 521478 que faz café, dança o créu e come sua esposa por você. Absurdo! Poderia dissertar muito mais sobre o assunto, porém tenho que atender uma ligação no meu celular...

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  3. Dia desses ouvi um rapaz falando pruma menina de bela saia:

    - Só escrevo sobre o que ninguém nunca escreveu.

    Quase tossi pra segurar o riso. Reparei nesse instante que, as vezes, pretencioso e pateta podem significar a mesma coisa.

    Não sei ao certo se já li um trocadilho assim, mas certamente não fui o primeiro, nem você o segundo.
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    Acho que o tal 'intuito de escravizar' não parte do objeto em si, de quem te vende, ou mesmo de quem o idealizou, mas de quem te dá um desses de presente. É como dar um sabonete, um perfume, um produto qualquer de beleza, um livro de auto-ajuda (eca): o ato em si carrega um significado, uma crítica, uma ordem - 'mantenha seu celular carregado e perto de sua pessoa, caso EU queria falar com você.'

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  4. Sim, mas você também deve levar em consideração as pessoas que se dão um objeto desses de presente e comentem uma auto-escravidão, visto que elas mantém o aparelho sempre ligado esperando alguém que não sabem quem é se comunicar.

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  5. Quem inventou o celular foi um gênio. Conseguiu criar um maldito produto que só deveria saciar um desejo e o transformou em necessidade. Que eu me lembre só as drogas conseguiram fazer isso. Eu às vezes penso que o sinto vibrar ou que o escuto tocar. Hoje mesmo a música dele surgiu em minha cabeça e fui atendê-lo. Maldito seja o danado! Mas espero o dia em que ele venha com uma função realmente útil, como um masturbador masculino.

    P.S: Mensagem de texto de operadora É uma das coisas mais brochantes que há.

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  6. 'Alguém que não sabem quem é.'

    Essa 'espera' a que me refiro, acredite, nunca é de algum desconhecido.

    Não acho que sejamos escravos, não de celulares pelo menos. Creio ser um objeto bem útil - ter chance de conseguir falar com uma pessoa muito distante quase como se ela estivesse ali, genial. É apenas uma mudança típica da nossa geração que achei interessante comentar. Como o abre-fácil nos pacotes de biscoito ou as câmeras digitais. Nem toda novidade que se populariza merece crítica indubitável.
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    Pra te ser sincero, conheço poucas coisas que surgem para saciar um desejo e não se tornam necessidade (num geral, claro). Se unir esse comentário ao do mayko, digo que oo computador é um terrível exemplo disso. Me arrisco a dizer que se pode conhecer muito de alguém apenas pela sua área de trabalho quando em uso, hauhauh, tal o grau de realçao entre máquina e usuário que costuma se estabelecer.

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  7. já percebeu que os melhores textos comentam sobre coisas que não são lá tão complexas e que de um jeito ou de outro todo mundo se dah conta, mas nao realmente para pra verbalizar? pois bem, mas nao fique metido, nao tah lah essas coisas nao XD
    acho que coisas que te poe em contato com outras pessoas te deixam assim ... imagine como era na epoca da carta? vc msm deve saber, mas vc checando a sua caixinha de correio todo dia, ou quando vê que o carteiro chegou já acha logo que é da pessoa...
    acho que todo mundo tem essa necessidade ...
    bem, whatever, ou, como diz nosso amigo, enfim ..

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  8. Escrevendo, dois objetivos me parecem claros: passar uma idéia ou despertar algum sentimento em quem lê. A primeira depende de refletir sobre o mundo e as coisas, o segundo, mera técnica narrativa. Logo, é possível envolver as pessoas com coisas simples.
    Mas... 'todo mundo tem essa necessidade' Será? Ou ganha-se essa necessidade conforme esses meios se mostram úteis?

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