terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Febre

E então, descobriu O Segredo, desvendou o mundo.

E agora sabia tudo. Compreendia minuciosamente os processos mais complexos e, acreditem, os mais simples. Entendia quem era, de onde vinha e para onde ia. Entendia as mulheres. O valor de pi tornou-se tão banal quanto as regiões além do sistema solar. Poderia precisar em segundos qualquer viagem para todo lugar. Poderia provar a existência ou não de Deus e de um amor verdadeiro.

Tamanho conhecimento adquirido após virar aquela chave levaria anos para se estruturar compreensivelmente em seus pensamentos. E assim o fez.

E a última coisa que aprendeu foi o tédio do Saber. Acabou qualquer expectativa - não havia cara-ou-coroa, apenas o resultado correto. Cansou-se do seu passado maquiado de futuro, surgiu a angústia, o ultra-ego. Já não era capaz de se comunicar com outros, sabia demais, sentia-se um Prometeu sem humanidade. Se embriagava, tentava enganar consciência e memória, brincava de roleta russa enquanto cantarolava um solo improvisado de dois meses a frente, na esperança de se distrair, de errar. Não acontecia.

E enrijeceu, emudeceu, se isolou. Petrificou sentado num banco de praia, olhando as ondas...

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Heróis da banalidade

Hoje não continuo minha história. Se houvesse alguma urgência em qualquer destes textos, diria ser o motivo da pausa. Hoje não narro, falo sobre.

Ao conhecer alguém, noto, ainda que distraído, seus gestos, suas expressões prediletas, seu tom de voz, pequenos detalhes de aparência, compilo tudo numa impressão única que, em pouco tempo, torna-se uma personagem capaz de substituir completamente o indivíduo real. Puro instinto. Injusto? Talvez, não importa - não me importa. Não chega a ser diferente dos métodos mais usuais de julgamento, e um tempo acontece, em que se precisa deles.

Mas admito haver uma anomalia: por vezes descubro, assim de soslaio, um brilho no olhar, algo que lança por terra o mais meticuloso estudo sobre quem vem a ser tal pessoa - é rápido e, creio eu, perceptível apenas aos que também o possuem. Não é inteligência, nem decisão, longe de ser qualquer daqueles conceitos abstratos tipicamente estampados nas camisas, ocultos em caracteres japoneses; está entre prazer mórbido e efêmera plenitude, uma espécie de transpirar da alma, querer por querer - só por poder querer, sem vaidades.

São daquelas pessoas que, de súbito, correm para onde estão viradas - e não adianta perguntar o porquê; acredite, não foi energia gasta à toa. Elas não se concentram: redirecionam a vida momentaneamente para aquilo que lhes interessa, e se pegar aquela insignificante bolinha no ar é subjetivamente importante, o corpo normalmente mole e arrastado salta rijo num bote, rala e rola metros adiante, termina estirado ao chão... com o objeto em mãos. Ou não - a grandeza estava em tentar. Venha com sonhos distantes e ela pergunta: como eu começo? Depois o mundo desaba, e depois é um outro dia.

Afinal, como julgar o que apenas é?

sábado, 6 de dezembro de 2008

Tintas e agulhas

Quando notou o quadro, já o estava observando há algum tempo. Nuvens, muitas delas, alguma coisa ao fundo, verde... uma árvore talvez? Sim, deveria ser. Não fosse, passaria a ser. Mesmo porque, tem a impressão de que já viu esse lugar antes. Já viu?

Sim. As coisas não estavam mais claras, porém já tinha algum vago objetivo e isso é o bastante. Vai para a porta de saída: por um momento, sabia para onde ir. Sorri, abre a porta.

Vai-se o sorriso. Uma rua larga cismava em se esticar para que não lhe vissem as pontas: parecia invejar o céu, que era infinito. O cinza dos muros não dava espaço para árvores e as únicas nuvens que via se escondiam em sua mente, enquadradas. Decide pelo único caminho cujo fim era possível, ou pelo menos visível. Tendo atravessado a rua, com passos de quem está perdido em pensamentos - ainda que estes não existissem de verdade - descobre um varal com roupas descoloridas. E movimento, alguém! Ele surge por detrás das camisas, lança um olhar desinteressado, coça o bigode grisalho, cata uma meia no balde e continua sua tarefa.

Que faria agora? Não é como se pudesse chegar até ele e perguntar - Quem sou eu? Pode me contar um pouco da minha vida, se não estiver muito ocupado? Posso te ajudar com essa roupa enquanto isso. - Esfrega as mãos, funga, olha em volta, suspira; definitivamente não sabe o que fazer. - Bom dia - Tinha percebido o nervosismo? Continuou seu trabalho.............?................?! - Moça, que foi?
- Sou nova por aqui, estou meio perdida...
- Tá indo pra onde?
- Err... (procuro um lugar que vi num quadro, sabe? Uma árvore e umas nuvens, muitas aliás... conhece?) Procuro um pintor. Conhece algum por aqui?
- Pintor? Pintor... não lembro.
- Sei como é.
- Disse algo?
- Não, de qualquer forma, deixa pra lá, obrigada.
- Ah! Peraí, se você seguir essa rua um tempo, pela esquerda, assim, tem uma cabana, cabana mesmo, de madeira, não muito longe, lá você talvez encontre alguma coisa, logo ali.

Agradece e se afasta. Não deve ser difícil de achar, as casas aqui são todas iguais. Vale a pena averiguar, afinal, é logo ali.

Ainda não, talvez seja um pouco mais adiante.
Nada ainda
Nada
...
Logo ali, ein?
...

O lugar distoava dos demais, os desenhos coloridos por toda a parede pareciam de outro mundo e a porta aberta parecia um sinal de boas-vindas. O importante era mesmo ter algum lugar para ir: não tinha a menor noção do que estava procurando. Entra.

continua...

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O quadro na sala

Um dia ela acorda e descobre que não há um 'ontem'. Olha ao redor e nota ser a cama de verniz escuro sobre a qual está deitada tão pouco familiar quanto o armário mal fechado ou mesmo suas próprias mãos. Emerge das cobertas que a envolvem, anda até a janela e a abre, como se fosse uma arca antiga onde estivesse guardado O Segredo, apenas à espera de alguém corajoso o suficiente para revelá-lo. Sente o vento frio beijar-lhe os seios e nota, pela primeira vez, sua nudez. Junto à consciência, lembra da vergonha e num impulso fecha a janela, olho do mundo - há desconhecido o bastante para se explorar aqui dentro.

Investigando o armário, encontra um espelho embutido em uma das portas e diversas peças de roupa, quase idênticas, não fossem as sutis variações nos símbolos inteligíveis - uma espécie de escrita? - que as adornam. Evita seu reflexo antes de estar completamente vestida, a desagradável surpresa na janela ainda está martelando sua cabeça - houvesse observado a si antes do mundo talvez descobrisse mais de ambos, agora evita um por ter recuado diante do outro. Quando finalmente coberta e protegida, reúne coragem e encara seus olhos. Não consegue, não havia percebido o quão embaçado estava o espelho. Limpo, a revela e permite à sua dona um longo e pasmado mirar, um alisar de cabelo e de rosto, um baixar de nariz perante à confusão.

A porta de saída do quarto está trancada apenas por dentro e os sapatos dela ganham a sala: vazia como sua memória. Mesa, cadeiras e estante, despojadas de uso, intensificam a ausência; de enfeites, teias de aranha; de perfume, a poeira. O resto da casa acompanha: tudo numa meticulosa generalidade, nada de livros ou retratos, resquício sequer de passado - um eterno 'hoje' mofado.

Continua...